Tenho-me sentido perdido, Gil. O telefonema da Vera Mantero a partilhar a notícia da tua ausência aconteceu à hora de almoço de um dia de trabalho pouco propício à exposição de uma dor opressora. Calei-a, e no fim da jornada adiei ainda mais o encontro com a perda. Foi assim que dei por mim a vaguear por uma livraria aqui no Porto. As minhas mãos erraram pelos escaparates, pegaram em livros sem convicção. Até que descobri Lisboa Clichê do Daniel Blaufuks. Regressado a um apartamento anónimo, os meus dedos foram folheando o exemplar que adquiri, permitindo-me reencontrar aquela que não deixa de ser a minha cidade, onde nasci e à qual vou sempre regressando. As fotografias evocaram outras tantas imagens guardadas em mim, e fiz-me acompanhar da tua memória neste deambular, Gil.
Que bom o Daniel ter fotografado tanto, que bom ter publicado este livro. Que bom iludir-me de que estou por instantes num outro tempo, numa outra paisagem, onde ainda me posso cruzar contigo e com outras pessoas que já só posso encontrar neste virar de páginas da memória. Que reconfortante poder reorganizar este presente difícil, evocando um passado não isento de dor mas a que o tempo soube realçar também uma certa alegria.
Olho o Chiado, o Bairro Alto, e recordo.
Lembro-me do Conservatório, onde conseguiste que acolhessem o primeiro workshop Lisboa-Nova Iorque-Lisboa, da Margarida Bettencourt e da Paula Massano. Sabes que sem ele talvez eu nunca mais tivesse querido dançar profissionalmente? Estávamos no verão de 1986 e o Jorge Salavisa comunicar-me-ia logo depois que o meu percurso enquanto estagiário no Ballet Gulbenkian iria terminar, que não pensava integrar-me no elenco da companhia. Eu compreendia bem a sua decisão, inclinava-me até a concordar com ele. Mas no workshop tinha-me entusiasmado com as aulas de técnica Cunningham e também a aprender os movimentos propostos pela Margarida. Que fazer? E o encontro com a Paula tinha sido uma revolução, tinha-me tirado o chão debaixo dos pés. Trabalhava só com improvisação, com movimentos criados por nós. Eu não sabia inventar, sabia só reproduzir movimento, aprendia e fazia, copiava e repetia. Tinha ficado perdido, imóvel. Até que reagi, e desde então não quis mais saber de aprender movimento, quis só imaginar, criar, inventar. Que fazer? Quis a sorte que além do contacto com a Paula e a Margarida, esses dias no Conservatório cimentassem também a minha amizade com o José Laginha e estimulassem a cumplicidade com a Filipa Pais. O relato destas quatro experiências de vida em Nova Iorque, deram-me o ímpeto para me aventurar nessa terra mítica. Fui, e continuei a dançar.
Depois, foi ainda no Conservatório, que me deste a ver o Café Muller da Pina Bausch, na pesquisa para a Pinacolada da Paula. E também aqui foste fundamental. Foi conhecer o seu trabalho que travou a tentação de uma passagem definitiva para o mundo do teatro que entretanto me tinha tinha seduzido. Ver essa obra do TanzTheater Wuppertal, e as outras que depois encontrei na videoteca do Lincoln Center, fez prevalecer a dança, com o seu potencial de abstracção, conciliado com a incursão na matéria teatral.
Entre as idas e vindas transatlânticas, uma geração despontava, alargando uma paisagem de dança contemporânea em Portugal quase inexistente até então. A tua defesa incansável desta área a despontar consolidou-a no plano nacional; o teu labor de diplomacia internacional foi fundamental para que tivéssemos visibilidade no exterior e criássemos pontes profissionais e artísticas com diferentes comunidades no estrangeiro. Cruzei-me com tanta gente e estabeleci laços que duram até hoje, graças a ti.
Para além de usufruir deste teu empenho profissional, foi inestimável contar também com a tua amizade. Estas fotografias recordam-me as nossas longas conversas, em restaurantes e bares de uma Lisboa ainda não gentrificada, mas desejosa de cosmopolitismo, de um encontro com o futuro. Sempre foste uma figura inspiradora para mim, que me serviu de modelo para pensar as minhas acções e decisões, embora saiba que estarei sempre a anos-luz da tua integridade e da tua capacidade de visão.
Quando a Antena Um me pediu que recordasse uma pequena história, uma situação que demonstrasse as tuas qualidades que eu referia no depoimento que dei, não consegui responder adequadamente. Hoje já saberia o que contar. Era outro o país, era um tempo em que havia ainda tudo por fazer na área da cultura e se convidavam pessoas conhecedoras do terreno para pôr mãos à obra. Havia um plano de activação de uma rede de recintos culturais, e tinha-se inaugurado uma primeira parceria numa cidade do interior, com a instalação de uma companhia residente num teatro. As tuas palavras regressaram vívidas. Disseste-me que este era só um primeiro passo, que agora era preciso esperar uns anos para que surgissem outros espaços alternativos, e que então a dinâmica cultural da cidade iria ser realmente interessante. Era inspiradora essa tua postura, de uma perseverança paciente até que acontecessem as conquistas que acreditavas necessárias, mas na crença em que depois é necessário ir ainda além, reunindo as condições para que surjam contrapontos, visões alternativas, diferenças. Assim contámos sempre com o teu incentivo a novas estruturas de produção e criação, a que surgissem outros contextos de programação independentes; praticaste sempre a atenção ao terreno, às aspirações surgidas no seio da comunidade de dança, dissociando-te do desejo mais ou menos inconfessado das instâncias de poder de moldar a paisagem artística segundo critérios exógenos.
Não tem sido fácil orientar-me nestes dias, apesar das mensagens trocadas com pessoas que tanto prezo, igualmente adoloradas. Agora estou no Porto, mas regressando a Lisboa farei de ti a minha companhia para vaguear pelos recantos da cidade, mantendo vivas as tuas palavras, que sempre me serviram de coordenadas.
Até já, Gil!
Francisco Camacho
foto de Mário Afonso